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Quando a saudade aperta

Os tempos pandêmicos nos marcaram com saudades, não é mesmo? Mas antes mesmo desse período, cada um de nós já sentiu saudades pelo menos uma vez na vida. Saudade é aquele sentimento de sentir a falta de alguém. Quando nos deparamos com a ausência de alguém querido, chega um sentimento de vazio, quase nunca fácil de sustentar.

Sentir falta é humano, e nós só sentimos saudade porque temos a capacidade de amar.

Mas existem saudades e saudades, não é mesmo? A palavra é a mesma, mas há diversos tons e modalidades para cada pessoa e circunstância.Cada caso requer um cuidado único, para que afinal, a gente não “morra de saudades”.

Saudade de quem não vemos há muito tempo por uma separação física – Muitos de nós tem alguém, seja um familiar ou amigo, que não está mais perto fisicamente. Alguns deles se mudaram para outro estado, outros para outros países. 

Quem sabe foi você que se mudou, e agora, apesar de uma vida cheia de  novos estímulos e contatos, sente falta de um velho mundo que guarda suas raízes. Bom, sobre isso, é sempre bom lembrar que nossas escolhas não estão cravadas em pedra. Assim, dentro das suas possibilidades reais, não há nada de errado em cogitar voltar.  Mas se não for esse o caso, hoje podemos usar a tecnologia a nosso favor e cuidar dessa saudade: marcar encontros online e ligar pela videochamada são formas de sentir a presença da pessoa, ainda que distante de alguma forma.

Conversar sobre a vida, sobre os sentimentos, desejos e medos, além de rir e chorar são atos necessários que permitem uma aproximação efetiva entre as pessoas. 

Por que não marcar aquela escapadinha para a cidade natal de tempos em tempos? Com alguma organização financeira e cronológica fica mais fácil de viabilizar.

Saudades de quem não vemos há muito tempo pela rotina corrida –  Outro tipo de saudade, cada vez mais comum em nossos tempos, são daquelas pessoas que estão próximas fisicamente (na mesma cidade, ou até no mesmo lar/trabalho), mas estão tão atarefadas com atividades que não sobre tempo para o encontro.

É importante lembrar aqui, que tempo envolve prioridade. De fato, as circunstâncias podem ser cruéis e acabar eventualmente nos engolindo. É  necessário, no entanto, separar algum tempo para se relacionar. Pode ser um cafezinho rápido, um almoço extenso, um filme no domingo à tarde – qualquer evento que garanta o encontro.

Necessário lembrar ainda, que uma relação é feita com pelo menos duas pessoas. Assim, todas as partes precisam  se empenhar em colocar essa pausa na agenda. Com grupos maiores, nem sempre será possível conciliar esse tempo, mas isso não é razão para não haver encontro. Afinal, quem pode e quer estará lá.

Saudades de quem vemos, mas desejamos mais –  Há ainda aquela saudade das pessoas que estão inscritas em nosso tempo cronológico, mas que ainda assim, parece que desejamos mais delas (seja na relação romântica, amiga ou familiar). Nesse caso, por que não alinhar expectativas com essa pessoa? É possível ter uma conversa franca através do diálogo, que você gostaria de intensificar essa relação (vendo mais a pessoa, fazendo atividades diferentes, ou oficializando algo). 

É claro que todo diálogo envolve um risco. Nesse caso o risco é ouvir algo diferente daquilo que você espera. Bom , aí cabe você  avaliar o que é possível pra você e o que não é. Por que não “misturar” as duas expectativas e formar uma nova, que equilibre ambos os desejos? O importante é dialogar, pois algumas vezes esperamos que o outro adivinhe o que estamos pensando e sentindo, mas isso não é possível. Encarar esse medo é essencial para a maturação de qualquer relacionamento.

Saudade de quem se foi –  Não podemos nos esquecer da mais intensa das saudades. Quando alguém querido vem a falecer, quase sempre é difícil passar pelo período de luto, já que é muito intensa a saudade esvaziante. É importante ressaltar aqui que o luto é necessário, ou seja, é importante passar por um tempo de “digestão” da morte de alguém. Quase sempre esse processo envolve sentimentos de angústia profunda, tristeza e melancolia, além de raiva, culpa e solidão. O tempo do luto é único e singular, e precisa ser respeitado pelo enlutado e pelas pessoas próximas, que devem servir como rede de apoio. O luto não serve, no entanto, para se finalizar nele mesmo.  Ele pode servir para se processar o fim que a morte traz, podendo renascer outros aspectos da sua vida subjetiva e objetiva.

Como o luto carrega a marca da morte, ocorre uma modificação em quem fica, e isso é natural. Mas ao nos deparamos com esse processo somos convidados a pensar sobre nossa própria finitude, o que nos leva a reflexão de como, onde, com quem e para que temos usado nosso tempo aqui na Terra. 

Passar pelo luto pode nos deixar mais fortes, na medida em que nos deparamos com nossa própria capacidade em lidar com momentos difíceis. As crenças espirituais ajudam muitas pessoas a lidar com o fim, na medida em que as interpretações religiosas oferecem certo conforto emocional, dando um propósito ao começo, meio e fim da vida. Se não for esse o seu caso, vale quando for possível, recorrer às lembranças positivas que você tem da pessoa amada. Ela sempre terá um lugar especial reservado em seu coração.

A saudade é um sentimento que envolve um afeto presente por lembranças passadas. Amamos algumas pessoas que fizeram parte da nossa trajetória em algum momento, e por algum motivo, não estão mais presentes ou estão bem menos presentes.  Ela pode ser uma saudadezinha gostosa, que nos arranca um sorriso bobo ao nos depararmos com algo que lembre aquele alguém. Também pode ser aquela saudade avassaladora que nos causa um profundo mal-estar, por um vazio que não se preenche assim tão fácil.

Como vimos, há circunstâncias que podemos usar recursos para, senão matar a saudade, pelo menos amenizá-la através do encontro com o outro, seja por um dedo de prosa, ou com um abraço caloroso.  Outras vezes a ausência está dada, e precisamos buscar recursos para seguirmos com nossas próprias vidas, mantendo a gratidão pela pessoa ter passado em nossa vida. Nesses casos,  aceitar a separação  é um exercício de humildade pela lembrança de que não controlamos todos os aspectos da vida.  Cuidar de si também é uma forma de não se esquecer. Se o sentimento de carinho era mútuo na relação da pessoa que você tem saudade, com toda certeza, ela não desejaria que você deixasse de se cuidar. O autocuidado é base para alegria. Isso não quer dizer que você não tem o direito de ficar triste, mas talvez seja interessante buscar ferramentas (físicas e simbólicas) para não sucumbir à tristeza. Psicoterapia é um processo fundamental nessa hora.

Vale dizer que a falta que o outro nos faz pode nos fomentar outras formas de estarmos presentes em nossas próprias vidas e no mundo. A ausência física de alguém não significa a destruição dela em sua vida: sem perceber, você deve carregar vários aspectos dessa pessoa (pode se perceber usando uma expressão que esse alguém sempre usava, sem exclamá-la propositalmente, por exemplo). Essa presença indireta é sempre uma chama da presença dessa pessoa.

Perceba que ela te deixou marcas, da mesma forma que você está deixando uma série de marcas nas suas relações e no mundo sem ao menos se dar conta. Esse exercício de consciência, no entanto, visa que você possa despertar para a forma como você tem deixado seus rastros por aqui, e construir da forma mais amorosa possível essas marcas que ficam.

Cristina Gonçalves de Abrantes

Psicóloga CRP 06/135259 

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